Motores flex: uma modernização é essencial para resgatar a competitividade do etanol [Metralhadas do Kamikaze]
Já se vai mais de um século do uso do etanol como combustível veicular, e por incrível que pareça o Ford Modelo T foi efetivamente o primeiro carro "flex" produzido em série. Numa época em que a eletrônica embarcada parecia devaneio de ficção científica, o ajuste do avanço da ignição numa das alavancas atrás do volante (a outra acionava o acelerador) e um carburador especial com difusor variável permitiam uma margem ainda estreita de compensações a serem feitas pelo condutor para ao menos tentar aproximar-se de condições menos desfavoráveis às propriedades do etanol, tendo em vista a taxa de compressão de até 4,5:1 nos primeiros anos de produção e depois diminuída para 4,1:1 até chegar em irrisórios 3,98:1 para poder suportar a baixa qualidade da gasolina da época e até um eventual uso de querosene.
Passados 95 anos do lançamento do Ford Modelo T ocorrido em 1908 nos Estados Unidos, a Volkswagen apresentou no Brasil a primeira versão produzida em série do Gol TotalFlex em 2003 em pleno início da "Era Lula", o que de certa forma tornava mais distante o temor de uma nova crise de desabastecimento do etanol como que foi deflagrada na safra '89-'90 e levou o público generalista a voltar-se novamente à gasolina. A bem da verdade, o Gol TotalFlex também não foi o primeiro FFV (flex-fuel vehicle) moderno, tendo em vista que versões de "barcas" americanas da década de '90 como o Ford Taurus e até a exótica Chevrolet Lumina APV tiveram versões capazes a operar com metanol antes que este perdesse espaço para o etanol. Mas de um modo geral, os motores flex dessa que pode ser considerada uma 2ª geração não agregaram nada que pudesse ser considerado precursor de uma revolução, resumindo-se a adaptações relativamente precárias a partir do respectivo similar a gasolina...
Não se pode negar que, mesmo com os avanços na tecnologia da injeção eletrônica e do turbo entre as décadas de '70 e '80 em mercados mais livres, outros recursos como o comando de válvulas variável e a injeção direta ainda se encontravam num estágio mais embrionário no começo da década de '90, além de contrastarem com a predominância de configurações básicas já frequentemente apontadas como obsoletas tanto em motores entre 6 e 8 cilindros tão adorados pelos americanos quanto no motor Volkswagen EA827 "AP" usado nos primeiros Gol TotalFlex. Ao menos a aplicação da injeção eletrônica e da ignição mapeada já podiam proporcionar ajustes em tempo real em função das condições de rodagem e especificação do combustível em uso. Ainda assim, tendo em vista que era oferecido no Gol um motor com turbo e variação no comando das válvulas de admissão, não deixava de ser ao menos curioso que esses recursos não tenham sido melhor aproveitados numa versão flex.
Considerando o uso do "overbooster" no turbocompressor mesmo em alguns modelos movidos somente a gasolina como o Fiat Bravo T-Jet por exemplo, o aumento na compressão dinâmica sob demanda poderia ser útil para emular uma variação na taxa de compressão estática, mais moderada para usar gasolina ou mais extrema com o etanol, além de eventuais estágios intermediários para diferentes misturas entre ambos os combustíveis. Já a variação do comando de válvulas ao menos na admissão pode proporcionar uma leve descompressão ao ser ajustado para prolongar a duração da abertura alguns graus após o início da fase de compressão ao usar gasolina, de modo que se possa manter uma taxa de compressão estática alta o suficiente para explorar bem a maior resistência do etanol à pré-ignição quando não se tente avançar a fase de admissão durante o curso de compressão. Ainda que esse recurso acabe diminuindo a eficiência volumétrica, tendo em vista que uma menor quantidade de mistura ar/combustível é admitida por ciclo e portanto o motor desenvolva valores de potência e torque semelhantes ao de um com cilindrada menor, a presença de motores com comando de válvulas variável alcançando até motores mais modestos como o Firefly usado nos Fiat Argo e Mobi levaria a crer que um comando de válvulas cuja variação sirva não somente para modular a curva de torque mas eventualmente também proporcionar condições mais favoráveis a cada combustível tenha um impacto relativamente pequeno sobre o custo final.
Outro recurso que merece algum destaque, e tem sido presença mais constante tanto em motores turbo como o SGE 1.4 do Chevrolet Cruze quanto aspirados como o Duratec Direct do Ford Focus, é a injeção direta. Com o combustível entrando nas câmaras de combustão ainda na fase líquida, e necessitando justamente do aquecimento aerodinâmico da compressão para vaporizar, reduz-se o risco da pré-ignição mesmo usando gasolina numa proporção pobre e com taxa de compressão relativamente elevada e mais adequada ao etanol. Também dispensa auxílios para a partida a frio como o arcaico tanquinho ou o pré-aquecimento elétrico do combustível. O efeito colateral prático mais evidente da injeção direta é no caso de se adaptar o veículo para operar também com gás natural, tendo em vista que ainda seria requerido o uso de uma pequena proporção de combustível líquido para manter os bicos injetores devidamente refrigerados, mas nesse caso até por não estar sendo usado como combustível principal o etanol pode valer a pena mesmo que o custo não pareça torná-lo atraente para substituir a gasolina ao usar somente combustíveis líquidos.
Tanto o turbo quanto alterações no comando de válvulas tenderiam a apresentar diferenças mais significativas no desempenho e consumo com gasolina ou etanol, enquanto a injeção direta pode as atenuar. Uma combinação desses diferentes recursos, que já pode ser encontrada em motores movidos somente a gasolina como o 8AR-FTS usado no Lexus NX300, seria o ideal para um flex apesar de esbarrar no custo e assim dificultar a aceitação por parte de um público generalista que se apegou à mediocridade sob o pretexto da facilidade de manutenção. Enfim, há espaço para diferentes soluções conquistarem um espaço no mercado e diminuírem prejuízos ao desempenho e/ou economia de combustível que os motores "flex" mais rudimentares dificilmente consigam superar...
Daniel Girald, gaúcho de Porto Alegre, mais conhecido como Kamikaze, estudante de Engenharia Mecânica com alguma experiência anterior em mecânica automotiva e de motocicletas, contribuindo no Auto REALIDADE para abordar temas técnicos escolhidos mediante sugestões de leitores, ou aleatoriamente entre as novidades mais destacadas no mercado como na estréia da coluna. Defensor ferrenho da liberação do uso de motores a diesel em veículos de qualquer espécie.
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