DKW-Vemag Belcar 1000: marcou época com o slogan "3=6" |
Já faz tempo que os motores 2-tempos vem sendo encarados no mercado automobilístico como mera sombra de um passado cada vez mais distante, embora esse layout ofereça algumas vantagens. Um caso emblemático é o dos DKW produzidos sob licença pela extinta Vemag entre '58 e '67, que com um motor de 3 cilindros e 1.0L prometiam desempenho equivalente a um motor 4-tempos com 6 cilindros e o dobro da cilindrada, tanto que um dos motes publicitários da época era "3=6". A bem da verdade, as "janelas" de transferência (para a mistura ar/combustível adicionada de óleo subir do cárter para os cilindros) e de escapamento um tanto acanhadas deixavam o desempenho mais modesto, próximo ao de motores 4-tempos de 1.4L ou 1.6L, mas com apenas uma boa lixa já era possível ampliá-las o suficiente para, com o auxílio de ajustes na carburação, transformar 50 pôneis malditos em um pequeno haras com mais de 100 puros-sangues.
Em motores 1.0L de 4 tempos essa faixa de potência só foi atingida em 2000 com o motor Turbo 16V usado pela Volkswagen no Gol até 2003 e na Parati até 2004, mas já contando com o auxílio da injeção eletrônica multiponto, ignição também eletrônica, e da complexidade do comando de válvulas variável...
O eixo montado no cabeçote de um motor DKW: apenas para mover a ventoinha do radiador |
A extrema simplicidade construtiva chama a atenção: não há válvulas acionadas mecanicamente para admissão e escape, o que além de reduzir peso morto já elimina uma parte considerável da inércia e atritos internos, favorecendo a eficiência geral. A menor quantidade de componentes móveis proporciona redução nos custos de produção, visto que uma menor quantidade de matéria-prima se faz necessária e ainda eliminam-se alguns processos de usinagem, refletindo para o consumidor final na aquisição e manutenção mais em conta. Por apresentar uma maior tolerância a operações em que esteja submetido a inclinações mais acentuadas, visto que a passagem do mesmo volume exato de óleo por todas as partes do motor proporciona uma lubrificação mais uniforme, fazendo com que até hoje seja mais comum em motosserras e roçadeiras. Também é ainda muito apreciado por adeptos do off-road recreacional, tanto que o último automóvel com motor 2-tempos destinado a um mercado desenvolvido foi o Suzuki Jimny 550 que manteve essa opção no Japão até '87, equivalente ao Suzuki Samurai que foi comercializado no Brasil durante a década de '90.
2-tempos |
Dependendo apenas da subida e descida do pistão para controlar o fluxo, até pode ser apontada como desvantagem a falta da vedação que uma válvula de escapamento proporcionaria enquanto a transferência é efetuada, permitindo que uma parte da mistura ar/combustível siga em direção ao escapamento ainda crua, mas uma simples câmara de reflexão (aquele "balão") no coletor de escapamento já é suficiente para minimizar esse problema sem encarecer e agregar muita complexidade como válvulas fariam. Com a admissão (no cárter) ocorrendo simultaneamente à fase de compressão (de mistura previamente admitida), e o mesmo se aplicando para o escape e a transferência subsequente durante a fase de expansão, definindo os 2 tempos em que o processo de combustão é efetuado, eliminam-se os chamados "pontos mortos" (superior entre compressão e expansão, e inferior entre expansão e escape) observados num motor 4-tempos convencional (ciclo Otto), reduzindo consideravelmente as chamadas "perdas por bombeamento" que hoje são uma pedra no sapato dos engenheiros...
4-tempos (ciclo Otto) |
Nos automóveis híbridos, como o Toyota Prius, um artifício usado para reduzir as "perdas por bombeamento" é retardar o fechamento da válvula de admissão, diminuindo a compressão dinâmica por regurgitar parte da mistura ar/combustível no coletor de admissão de modo a fazer com que o curso de expansão seja mais longo que o de compressão, o chamado "efeito Atkinson", numa referência ao motor desenvolvido pelo inglês James Atkinson que usa um virabrequim articulado, reputado inviável para o uso veicular devido ao maior custo de produção inerente à complexidade acrescentada. Caso fossem aplicados motores 2-tempos ao invés de recorrer a esse expediente, na prática não seria tão incoerente à proposta "ecologicamente-correta" por trás do sucesso comercial dos híbridos...
Considerando especificidades inerentes à operação de um híbrido, é importante frisar que a correta lubrificação é um ponto particularmente crítico, necessitando de um controle mais preciso da pressão do óleo para evitar que o cabeçote fique mais "seco" entre desligamento e arranque automáticos do motor a gasolina em tráfego urbano pesado, condição em que a tração puramente elétrica é priorizada. Normalmente recorre-se a uma válvula montada na base do filtro de óleo para diminuir o fluxo de retorno em direção ao cárter, visto que nos motores 4-tempos a lubrificação é por recirculação do óleo, ao contrário dos 2-tempos onde é totalmente consumido durante o processo de combustão. Pois bem, esse é outro aspecto polêmico sob o ponto de vista ambiental: além da combustão evitar um descarte inadequado que poderia resultar em contaminação do solo e água, vale lembrar que a experiência no uso de lubrificantes de origem renovável já é mais comum nos 2-tempos, notabilizada pelo óleo de mamona muito usado em karts, além de se diluir melhor mesmo na gasolina brasileira com adição de etanol anidro, atendendo bem às necessidades de um motor 2-tempos "flex"...
Esforços para reabilitar os motores 2-tempos vem sendo realizados desde a última metade da década de '80, tendo na adoção da injeção direta de combustível (mantendo no entanto a transferência para o óleo e o ar) um dos recursos mais promissores para aumento da eficiência geral e controle de emissões. Dentre os que apostaram nessa possibilidade, merece destaque a Chrysler, que entre '89 e '95 chegou a desenvolver um motor de 1.5L com 3 cilindros, bloco e cabeçote em peça única (eliminando a junta de cabeçote e possibilitando uma refrigeração mais uniforme), duas velas por cilindro e injeção direta, projetado em parceria com a Mercury Marine, cogitado para ser oferecido no Neon a partir de '97.
Embora a Chrysler tenha desistido desse motor devido ao custo de uma solução para controlar as emissões de óxidos de nitrogênio (NOx), mais elevadas em decorrência da mistura mais pobre (uma menor proporção de combustível para um dado volume de ar admitido), aplicações posteriores da injeção direta em motores 4-tempos mais atuais como o 1.4TSI do Volkswagen Golf de 7a geração dá a entender que a justificativa apresentada não era tão coerente...
Outro caso bastante conhecido foi o do motor 2-tempos de 1.2L e 3 cilindros com injeção direta apresentado em '92 pela empresa de consultoria técnica australiana Orbital Engines e desenvolvido em parceria com a Ford, que visava usá-lo no Fiesta de 3a geração. Apesar de resultados promissores em testes de campo, e da previsão de oferecer comercialmente essa opção em '95, casualmente o ano da introdução do Fiesta no mercado brasileiro, a mesma justificativa questionável sobre as emissões foi dada para não aplicar a tecnologia para o grande público. Foi salientada também a possibilidade dos consumidores rejeitarem a necessidade de reabastecer o reservatório de óleo periodicamente, ignorando que tal procedimento seria mais rápido e até higiênico que uma troca de óleo num motor 4-tempos. Uma vantagem da injeção direta é a lubrificação mais precisa e econômica, por preservar melhor as propriedades do óleo, podendo variar automaticamente a proporção (em partes de combustível para uma de óleo) entre 90:1 e 450:1 e mantendo uma média de 230:1 no caso do sistema Orbital, enquanto num motor que necessite da mistura do óleo à gasolina (ou etanol/metanol) o mais comum é entre 50:1 e 20:1. Mesmo em motores 2-tempos que usem carburador, como o da Yamaha Jog, já é possível reduzir sensivelmente o consumo de óleo ao usar um sistema de mistura automática com o lubrificante acondicionado num reservatório separado, ainda que numa proporção menor que a ocorrida com a injeção direta, pois quando o combustível ainda passa pela transferência acaba por diluir o óleo.
Apesar do 2-tempos ser atualmente rejeitado pela indústria automotiva, mesmo com os notáveis avanços proporcionados pela injeção direta, segue amplamente usado no segmento náutico, por grandes fabricantes como a Mercury Marine (com a denominação OptiMax para o sistema da Orbital Engines) e Evinrude (com a nomenclatura E-TEC aplicada ao mesmo sistema). A certificação desses motores para comercialização até na California assegura a adequação às mais exigentes normas de controle de emissões.
Não há, portanto, uma razão plausível para que os motores 2-tempos sejam relegados ao ostracismo pela indústria automotiva, que segue condicionando o consumidor a ficar de 4...
Sobre o autor
Daniel Girald, gaúcho de Porto Alegre, mais conhecido como Kamikaze, estudante de Engenharia Mecânica com alguma experiência anterior em mecânica automotiva e de motocicletas, contribuindo no Auto REALIDADE quinzenalmente (na primeira e na terceira sextas-feiras de cada mês) para abordar temas técnicos escolhidos mediante sugestões de leitores, ou aleatoriamente entre as novidades mais destacadas no mercado como na estréia da coluna. Defensor ferrenho da liberação do uso de motores a diesel em veículos de qualquer espécie.
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